"Se tivesse começado uma guerra, saberíamos o que fazer.
Para a guerra, dispúnhamos de instruções. Mas isso?"
No dia 26 de abril de 1986, à 1h23min da madrugada, uma pequena cidade na fronteira da Ucrânia com Belarus (Bielorrússia) foi o palco do maior desastre nuclear da história. Um teste malsucedido realizado na Usina Nuclear de Chernobyl causou a explosão e o incêndio do reator 4, lançando toneladas de substâncias radiativas não apenas na atmosfera da Ucrânia e de Belarus, mas de praticamente toda a Europa. Dois dias depois, foi iniciada a evacuação dos moradores de Pripyat, cidade localizada junto à usina e fundada para abrigar os seus trabalhadores. As evacuações continuaram em um raio de 30km do local da explosão, região que ficou conhecida como "zona de exclusão". A radiação atingiu um quinto do território de Belarus, o país mais afetado.
Imagem do reator 4 após a explosão
Os relatos das pessoas envolvidas na tragédia de forma direta ou indireta são apresentados em "Vozes de Tchernóbil", de Svetlana Aleksiévitch, bielorrussa vencedora do prêmio Nobel de Literatura do ano passado. Svetlana não é escritora de ficção. É uma jornalista que se especializou em narrar períodos dramáticos da história da extinta União Soviética através das vozes de seus protagonistas. É exatamente esse o caso de "Vozes de Tchernóbil". Assim, temos uma obra composta integralmente por monólogos, nos quais pessoas de todas as idades, profissões e classes sociais discorrem sobre o acidente e o impacto que ele teve em suas vidas.
O que eu gostei?
A autora foi muito feliz ao reunir dezenas de depoimentos de pessoas tão diferentes. Como comentei no parágrafo anterior, o livro abrange impressões de cientistas a crianças, de viúvas de liquidadores e bombeiros a camponeses, de políticos a professores. Além disso, o tema foi abordado de forma sensível sem ser piegas. Em vez de provocar pena no leitor (muito embora isso possa ocorrer), os depoimentos levam à reflexão sobre a universalidade dos sentimentos e os limites do poder e conhecimento humanos nas tragédias. Ucrânia, Belarus e o Leste Europeu de modo geral representam lugares e culturas muito distantes para a maioria dos brasileiros. É comum a ideia de que são povos "frios", em oposição aos calorosos e afetuosos latinos. Estereótipos à parte, uma obra como "Vozes de Tchernóbil" nos lembra que os seres humanos são mais parecidos entre si do que diferentes. Em Belarus ou no Brasil, as pessoas sofrem, sentem raiva, dor, desespero, saudade, ainda que cada uma a seu modo.
Dois monólogos em particular me comoveram bastante: o primeiro, de Ludmila Ignátienko, esposa de um dos bombeiros que apagou o incêndio na usina e morreu algumas semanas mais tarde, em razão da dose fatal de radiação que recebeu; o segundo, de Vassíli Boríssovich Nesterénko, ex-diretor do Instituto de Energia Nuclear da Academia de Ciências de Belarus. A comoção causada pelo depoimento de Ludmila é imediatamente compreensível em razão da tragédia pessoal que ela viveu. Entretanto, ainda que Vassíli não tenha sofrido alguma perda familiar, seu relato também me tocou profundamente ao narrar a tentativa frustrada do cientista de proteger a população, apesar da resistência das autoridades. Abaixo, transcrevo um trecho de seu monólogo, no qual ele descreve seu encontro com o primeiro secretário do Comitê Central de Belarus, um homem chamado Sliunkóv, em 29 de abril de 1986, três dias após o acidente:
Chego de qualquer forma a Sliunkóv. Descrevo o quadro que vi no dia anterior. É preciso salvar as pessoas! Na Ucrânia (eu tinha ligado para lá), já haviam iniciado a evacuação.
"O que pretendem os seus dosimetristas (do instituto) correndo a cidade e espalhando o pânico? Já me aconselhei em Moscou com o acadêmico Ilin. A situação é normal. Mandamos tropas e equipamentos militares para repara a ruptura. Na central, trabalha uma comissão governamental. E também procuradores. Estão ponto tudo em ordem. É bom não esquecer que há uma guerra fria. Estamos cercados de inimigos."
Já haviam se precipitado sobre a nossa terra milhares de toneladas de césio, iodo, chumbo, zircônio, cádmio, berílio, boro, quantidades incalculáveis de plutônio (...), ao todo 450 tipos de radionuclídeos. Uma quantidade equivalente a 350 bombas atômicas como a que lançaram sobre Hiroshima. Era preciso falar sobre a física. Sobre as leis da física. Mas se falavam sobre inimigos. Buscavam-se inimigos.
Assim, as vidas de milhões de pessoas ficaram nas mãos de autoridades que eram, nas palavras do ex-diretor, "uma combinação letal de ignorância e corporativismo". A máquina estatal falhou em proteger as pessoas, e muitos apontam o acidente de Chernobyl como um dos fatores que acelerou o colapso da então fragilizada União Soviética.
O que eu não gostei?
Minha única ressalva é que a estrutura de monólogos ininterruptos pode deixar a leitura um pouco cansativa às vezes. Não há qualquer problema se a intenção é de absorver a obra aos poucos. Entretanto, para quem costuma ler muitas páginas de um livro de uma vez, como eu, a falta de variação nessa estrutura compromete uma leitura longa. Não digo que isso seja um defeito da obra, entendo que tenha sido uma escolha da autora para dar efetivo protagonismo aos depoentes, mas talvez uma variação nesse formato poderia trazer um resultado ainda melhor.
Existem muitos outros temas interessantes na obra que não abordei aqui. O "espírito soviético", o fim da fé incondicional na ciência e a volta da religiosidade em certa medida são alguns exemplos. Decidi deixá-los de fora para não tornar a resenha muito longa e não perder o foco. Para encerrar, posso dizer que recomendo esse livro não apenas àqueles que querem entender melhor o desastre de Chernobyl, mas também aos que se interessam pela história e memória de um povo que, apesar das tragédias que viveu, sempre aprendeu a se reerguer.