terça-feira, 2 de agosto de 2016

Vozes de Tchernóbil


                           
"Se tivesse começado uma guerra, saberíamos o que fazer. 
Para a guerra, dispúnhamos de instruções. Mas isso?"

No dia 26 de abril de 1986, à 1h23min da madrugada, uma pequena cidade na fronteira da Ucrânia com Belarus (Bielorrússia) foi o palco do maior desastre nuclear da história. Um teste malsucedido realizado na Usina Nuclear de Chernobyl causou a explosão e o incêndio do reator 4, lançando toneladas de substâncias radiativas não apenas na atmosfera da Ucrânia e de Belarus, mas de praticamente toda a Europa. Dois dias depois, foi iniciada a evacuação dos moradores de Pripyat, cidade localizada junto à usina e fundada para abrigar os seus trabalhadores. As evacuações continuaram em um raio de 30km do local da explosão, região que ficou conhecida como "zona de exclusão". A radiação atingiu um quinto do território de Belarus, o país mais afetado. 


                                           Imagem do reator 4 após a explosão

Os relatos das pessoas envolvidas na tragédia de forma direta ou indireta são apresentados em "Vozes de Tchernóbil", de Svetlana Aleksiévitch, bielorrussa vencedora do prêmio Nobel de Literatura do ano passado. Svetlana não é escritora de ficção. É uma jornalista que se especializou em narrar períodos dramáticos da história da extinta União Soviética através das vozes de seus protagonistas. É exatamente esse o caso de "Vozes de Tchernóbil". Assim, temos uma obra composta integralmente por monólogos, nos quais pessoas de todas as idades, profissões e classes sociais discorrem sobre o acidente e o impacto que ele teve em suas vidas. 

O que eu gostei?

 A autora foi muito feliz ao reunir dezenas de depoimentos de pessoas tão diferentes. Como comentei no parágrafo anterior, o livro abrange impressões de cientistas a crianças, de viúvas de liquidadores e bombeiros a camponeses, de políticos a professores. Além disso, o tema foi abordado de forma sensível sem ser piegas. Em vez de provocar pena no leitor (muito embora isso possa ocorrer), os depoimentos levam à reflexão sobre a universalidade dos sentimentos e os limites do poder e conhecimento humanos nas tragédias. Ucrânia, Belarus e o Leste Europeu de modo geral representam lugares e culturas muito distantes para a maioria dos brasileiros. É comum a ideia de que são povos "frios", em oposição aos calorosos e afetuosos latinos. Estereótipos à parte, uma obra como "Vozes de Tchernóbil" nos lembra que os seres humanos são mais parecidos entre si do que diferentes. Em Belarus ou no Brasil, as pessoas sofrem, sentem raiva, dor, desespero, saudade, ainda que cada uma a seu modo. 

Dois monólogos em particular me comoveram bastante: o primeiro, de Ludmila Ignátienko, esposa de um dos bombeiros que apagou o incêndio na usina e morreu algumas semanas mais tarde, em razão da dose fatal de radiação que recebeu; o segundo, de Vassíli Boríssovich Nesterénko, ex-diretor do Instituto de Energia Nuclear da Academia de Ciências de Belarus. A comoção causada pelo depoimento de Ludmila é imediatamente compreensível em razão da tragédia pessoal que ela viveu. Entretanto, ainda que Vassíli não tenha sofrido alguma perda familiar, seu relato também me tocou profundamente ao narrar a tentativa frustrada do cientista de proteger a população, apesar da resistência das autoridades. Abaixo, transcrevo um trecho de seu monólogo, no qual ele descreve seu encontro com o primeiro secretário do Comitê Central de Belarus, um homem chamado Sliunkóv, em 29 de abril de 1986, três dias após o acidente:


Chego de qualquer forma a Sliunkóv. Descrevo o quadro que vi no dia anterior. É preciso salvar as pessoas! Na Ucrânia (eu tinha ligado para lá), já haviam iniciado a evacuação. 

"O que pretendem os seus dosimetristas (do instituto) correndo a cidade e espalhando o pânico? Já me aconselhei em Moscou com o acadêmico Ilin. A situação é normal. Mandamos tropas e equipamentos militares para repara a ruptura. Na central, trabalha uma comissão governamental. E também procuradores. Estão ponto tudo em ordem. É bom não esquecer que há uma guerra fria. Estamos cercados de inimigos." 

Já haviam se precipitado sobre a nossa terra milhares de toneladas de césio, iodo, chumbo, zircônio, cádmio, berílio, boro, quantidades incalculáveis de plutônio (...), ao todo 450 tipos de radionuclídeos. Uma quantidade equivalente a 350 bombas atômicas como a que lançaram sobre Hiroshima. Era preciso falar sobre a física. Sobre as leis da física. Mas se falavam sobre inimigos. Buscavam-se inimigos.


Assim, as vidas de milhões de pessoas ficaram nas mãos de autoridades que eram, nas palavras do ex-diretor, "uma combinação letal de ignorância e corporativismo". A máquina estatal falhou em proteger as pessoas, e muitos apontam o acidente de Chernobyl como um dos fatores que acelerou o colapso da então fragilizada União Soviética.

O que eu não gostei?

Minha única ressalva é que a estrutura de monólogos ininterruptos pode deixar a leitura um pouco cansativa às vezes. Não há qualquer problema se a intenção é de absorver a obra aos poucos. Entretanto, para quem costuma ler muitas páginas de um livro de uma vez, como eu, a falta de variação nessa estrutura compromete uma leitura longa. Não digo que isso seja um defeito da obra, entendo que tenha sido uma escolha da autora para dar efetivo protagonismo aos depoentes, mas talvez uma variação nesse formato poderia trazer um resultado ainda melhor.

Existem muitos outros temas interessantes na obra que não abordei aqui. O "espírito soviético", o fim da fé incondicional na ciência e a volta da religiosidade em certa medida são alguns exemplos. Decidi deixá-los de fora para não tornar a resenha muito longa e não perder o foco. Para encerrar, posso dizer que recomendo esse livro não apenas àqueles que querem entender melhor o desastre de Chernobyl, mas também aos que se interessam pela história e memória de um povo que, apesar das tragédias que viveu, sempre aprendeu a se reerguer.


                   

              

           

               

                 

                

                  

domingo, 17 de julho de 2016

Resenha da semana: Matilda

             
 
O post de hoje é especial pra mim, pois vou escrever sobre uma das histórias preferidas da minha infância. Digo "história" e não "livro" porque conheci "Matilda" através do filme de 1996, dirigido pelo Danny DeVito e com a atriz Mara Wilson no papel da protagonista. Eu gostava tanto do filme que assistia todas as vezes em que passava na TV (o que é bastante incomum pra mim, que praticamente nunca assisto a filmes que já vi antes). Só recentemente descobri que o filme é inspirado em um livro escrito por um célebre autor de livros infantis, Roald Dahl. Filho de noruegueses nascido no País de Gales, em 1916, Roald Dahl é tão importante entre os escritores de livros infantis que mesmo quem não reconhece seu nome certamente já ouviu falar de suas obras: entre as mais famosas estão "A fantástica fábrica de chocolate" (com o famoso Willy Wonka), "O Bom Gigante Amigo" (transformado recentemente em um filme dirigido por Steven Spielberg), "O fantástico senhor raposo" e "As bruxas" (outro história presente na minha infância através do filme "Convenção das Bruxas", que me fazia morrer de medo).

Pois bem. Umas semanas atrás eu estava na livraria do meu bairro dando uma olhada nos livros sem nenhum interesse específico. E então encontrei "Matilda". Resolvi me dar esse presente e foi um ideia muito feliz, pois me diverti bastante relembrando a história. Depois da leitura, assisti ao filme, que não via há muitos anos, e aí minha felicidade ficou completa :D.


Agora, vamos à resenha propriamente dita.

Matilda é a história de uma menina que adora ler e é muito inteligente. Seus pais não apenas não percebem os grandes talentos da filha como também a tratam com indiferença e menosprezo. Seu pai é um vendedor de carros desonesto que vende veículos velhos e muito rodados como se fossem quase novos, e sua mãe é uma perua que só se preocupa com sua aparência e seus programas de televisão, deixando a filha sozinha em casa todas as tarde para ir jogar bingo.

A vida de Matilda começa a ficar um pouco mais animada quando ela descobre a biblioteca pública da cidade, que lhe oferece a oportunidade de ler muitos livros incríveis e até de levá-los emprestados para casa. Quando enfim começa a ir para a escola, ela tem ao mesmo tempo a alegria de conhecer uma professora incrível e o pesadelo de ter que lidar com uma diretora que é a verdadeira encarnação da bruxa dos livros infantis, só que sem a vassoura, o caldeirão e o chapéu. 

O que eu gostei no livro?

Para mim, "Matilda" é um livro sobre as dores e as delícias da infância. É nessa fase que a personagem descobre a alegria dos livros, da escola, das amizades e de ter uma professora como a Srta. Mel (Miss Honey no original). Ao mesmo tempo, e talvez isso seja o que mais me toca na história, é o relato da infância também como uma fase de solidão, frustração, de ter que lidar com o autoritarismo e a falta de compreensão dos adultos sem muitas vezes ter a que ou a quem recorrer. No livro, ela encontra consolo em seus poderes mágicos, que dão um toque especial à narrativa (quem resiste a uma história com um pouco de magia?). Em resumo, Matilda é uma menina determinada que enfrenta seus problemas com coragem, criatividade e, claro, com um pouquinho de mágica. Posso dizer sem medo que é minha personagem favorita da literatura até hoje <3.
         
                                                              Tem como resistir??
 
Alguma coisa que eu não gostei?

Sim. Na minha opinião, o livro termina de forma apressada. O ritmo da história vai muito bem até perto do fim, mas quando ele chega, a impressão que se tem é de que o autor não conseguiu pensar em uma boa forma de conduzir progressivamente o final, e terminou a obra de forma um tanto abrupta. Olhando algumas resenhas, descobri que não fui a única a ter essa impressão. De qualquer forma, isso não diminuiu nem um pouco o meu amor pela obra.

Para encerrar minha resenha, queria apenas escrever algumas palavras sobre o filme. Muita gente diz que o livro é sempre melhor que sua adaptação para as telas. Eu não concordo com essa opinião, pois acho que existem notáveis exceções. "Matilda" é uma delas. Para mim, o filme é tão bom quanto o livro. Claro que existem alterações na história: o filme faz acréscimos que não constam no livro. Em geral elas me agradaram bastante, e até achei que no filme foi "corrigida" a tal falha que apontei no parágrafo anterior quanto ao final. 

Bom, por hoje era isso. Até a próxima ;).

             



         

domingo, 10 de julho de 2016

Jane Eyre



           Inaugurando os posts literários, minha primeira resenha será sobre "Jane Eyre", de Charlotte Brontë.

             Meu interesse por ele surgiu após as leituras que fiz nos últimos meses. Depois de dois livros de Jane Austen e o clássico "O Morro dos Ventos Uivantes", de Emily Brontë, irmã da autora, achei que era a hora de completar essa sequência com "Jane Eyre". Então, sem mais delongas, vamos às minhas impressões.

             Aviso: a resenha contém spoilers

            A obra é um romance autobiográfico da protagonista que dá nome ao título. A história começa quando Jane Eyre tem 10 anos e vive no ambiente hostil da casa de sua tia. Descobrimos que se trata de uma orfã: seus pais morreram quando era apenas um bebê e ela ficou aos cuidados da esposa de seu falecido tio, irmão de sua mãe, que a detesta. Representando um fardo para sua tutora e desejando a todo custo deixar um ambiente tão opressor, a menina é enviada à Lowood, uma instituição de educação para meninas carentes. Lá ela passa oito anos, seis como aluna e dois como professora, quando resolve que é hora de começar uma vida nova. Após colocar um anúncio no jornal, ela consegue trabalho como preceptora num local distante dali, na propriedade de Edward Rochester, onde acontecem alguns eventos misteriosos. A partir de então a história passa a centrar-se na atração entre Jane e o Sr. Rochester, até uma reviravolta que acontece na segunda metade do livro. Bem, revelar mais do que isso seria contar a história inteira, então vou parar por aqui.  

             Então, o que achei do livro? A história da protagonista é interessante e emociona em vários momentos. Uma criança órfã que sofre maus tratos e que passa a adolescência em um internato de condições insalubres: difícil não se solidarizar com ela. Mas para mim o ponto alto do romance é a personalidade da protagonista. Jane é forte, corajosa, e tem um espírito de liberdade que lhe acompanha ao longo de toda a narrativa. Ao decidir deixar a escola Lowood, busca um emprego através de um anúncio e parte sozinha para uma viagem distante rumo ao desconhecido. Além disso, ela demonstra fervorosa defesa de seus princípios quando decide deixar o homem por quem se apaixonou em razão do impedimento legal para o casamento deles. Portanto, na minha opinião, considerando as personagens femininas da época, Jane Eyre é um raro exemplo de coragem e independência, e por isso acredito que a obra mereça o prestígio que recebeu desde sua publicação. Outro mérito da obra são os diálogos, especialmente entre Jane e o Sr. Rochester. Ambos são muitas vezes irônicos, espirituosos e até sarcásticos. Não poderia deixar de citar uma das minhas falas preferidas de Jane, quando ela ainda era criança, ao ser questionada pelo diretor de sua futura escola (em tradução livre):

           "- Você sabe para onde vão as pessoas más depois que morrem?
             - Vão para o inferno - foi minha resposta direta e ortodoxa.
             - E o que é o inferno? Você pode me dizer?
             - Um poço cheio de fogo.
             - E você gostaria de cair nesse poço e queimar ali para sempre?
             - Não, senhor.
             - E o que você deve fazer para evitá-lo?
                Eu refleti por um momento. Minha resposta, quando veio, era questionável:
             - Devo me manter saudável e não morrer."

          Quanto à trama, também me agradou bastante. Não me senti entediada em nenhum momento, e quando achei que a história tinha chegado ao seu ápice e não evoluiria mais, a autora provoca uma reviravolta que enriquece a história com novos personagens e situações.

          Bom, agora vamos ao que não gostei tanto assim. O livro traz elementos do romance gótico, que é um gênero que não me agrada muito. Exageros à parte, o Sr. Rochester me lembrou em alguns momentos Heathcliff, de "O Morro dos Ventos Uivantes": ocasionalmente rude, verbalmente agressivo e temperamental. Enfim, a atmosfera de castelos medievais assombrados e mocinhos geniosos não é exatamente o tipo de literatura que me seduz. Mas entendo que isso seja muito pessoal, pois tem gente que adora tanto Heathcliff quanto o Sr. Rochester, que já foi inclusive eleito o personagem mais romântico da literatura inglesa.

         Para finalizar, apenas um comentário sobre edição da BestBolso que li (foto acima). É uma edição barata, capa comum, com um pequeno prefácio da tradutora. Minhas críticas à edição são quanto à nitidez da impressão (pequeno problema que parece ocorrer em todas as edições da BestBolso) e quanto à falta de notas de rodapé com a tradução das falas em francês. Para quem não entende essa língua, pode ser um pouco incômodo depender do Google Tradutor para compreender trechos de alguns diálogos.

        Bom, por ora é isso. Um abraço e até a próxima ;).

       

sábado, 9 de julho de 2016

Apresentação

           
              Antes de começar, acho que algumas informações e esclarecimentos são úteis.

              Meu nome é Rafaella, tenho 27 anos, sou estudante de Letras e moro em Porto Alegre, RS. O blog surgiu quando me dei conta de que fazer resenhas sobre as leituras que tenho feito poderia ser uma ótima maneira de organizá-las na minha cabeça. Tenho emendado um livro no outro sem parar para fazer uma reflexão sobre o que li. Além disso, pensei que também poderia ajudar, com as resenhas, aqueles que tivessem procurando informações sobre essas obras.

               No começo, como estudante do início do curso, pensei que não teria muito a oferecer em minhas avaliações, mas mudei de ideia por alguns motivos. Em primeiro lugar, porque acho que a prática, se não leva à perfeição, pode ajudar a chegar mais perto dela. Em segundo lugar, porque quanto mais pessoas se expressarem sobre o que lhes interessa, melhor. Se for sobre Literatura então, melhor ainda <3, ainda mais em país que lê tão pouco como o nosso.

               Como o blog surgiu em razão de um projeto pessoal, meu principal objetivo é escrever sobre minhas leituras. Assim, é provável que os posts não tenham uma sequência muito lógica é que tratem tanto de ficção quanto de obras técnicas do curso de Letras. De qualquer forma, ainda que seja um projeto criado em meu próprio benefício, ficarei bastante feliz se outras pessoas puderem aproveitar o que vou escrever. Por ora é isso.

              Até mais ;).